Saturday, April 09, 2005

25 - A traduzibilidade (primeira parte)


Atividade tradutiva deve considerar dois fatores: a distância cultural e a distância lingüística entre o texto que vai ser traduzido (prototexto) e o idioma/cultura do texto que vai ser produzido (metatexto).
As repercussões práticas deste enfoque da tradução são muitas. Em primeiro lugar, a formação do tradutor deve incluir, além dos conhecimentos lingüísticos necessários, o conhecimento específico de uma ou mais culturas da zona lingüística pertinente. Tomaremos o idioma inglês como exemplo.
Na maioria de nossos colégios, o segundo idioma que se ensina, com maior freqüência, é o inglês e, no âmbito de tal ensino, transmitem-se alguns elementos da cultura britânica. Nas faculdades de tradução, os temas culturais relativos à zona lingüística do inglês se referem principalmente à cultura britânica. Este conhecimento é indispensável para os futuros tradutores que se defrontarão com textos britânicos.
Mas, se os textos para tradução pertencem, por exemplo, às literaturas pós-coloniais, ou à literatura anglo-americana, será preciso contar com formação cultural relativa a estes países. Do contrário, o tradutor somente poderia alcançar a parte da tradução que se refira à transcodificação lingüística.
Não existe unanimidade quanto à análise das influências mútuas entre língua e cultura. Segundo o estudioso B. L. Whorf, a língua não é apenas um instrumento que permite expressar aspectos de uma cultura determinada, mas também uma espécie de catálogo, uma sistematização de um conhecimento que, de outro modo, estaria desordenado. Trata-se de uma percepção que contradiz o conceito tradicional de que, na relação entre língua e cultura, a primeira tem somente a função de formular conhecimentos adquiridos, independente da capacidade lingüística. Conforme Whorf, se é o idioma que dá forma e sistematiza o conhecimento, no caso de dois povos ou duas pessoas que falem idiomas distintos, com freqüência terão diferentes concepções do mundo e não somente diferentes formulações dos mesmos conceitos1. Na opinião de M. Dummett, a existência dos objetos depende da língua, é a língua que decide que tipos de objetos se reconhecem como existentes.
Por outro lado, a teoria de Whorf destaca, de forma implícita, a importância decisiva que tem a aprendizagem da língua materna, já que mediante ela o indivíduo aprende os mecanismos para sistematizar a experiência. Segundo esta teoria, a aprendizagem de um idioma estrangeiro também encerra a aprendizagem de um conceito diferente do mundo, de uma percepção diferente da cultura. Whorf acredita que não existe conhecimento sem uma língua materna e que, portanto, os indivíduos multilíngües não possuem um conhecimento unívoco.
Além desta concepção geral das relações língua/experiência/conhecimento, o pensamento de Whorf não é de grande interesse para o âmbito específico do tradutor, porque, quando ele se ocupa especificamente da tradução, se baseia na tradução palavra por palavra2. Do ponto de vista de uma teoria semiótica aplicada à prática da tradução, o fato de que a palavra "neve" corresponda, em esquimó, a uma série de palavras diferente não tem um interesse especial, nem significa que entre um esquimó e nós existam diferenças quanto aos processos intelectuais. Significa apenas que nossa experiência cultural é diferente.
Com Whorf, temos uma nova perspectiva, muito fascinante, segundo a qual a língua não é um mero instrumento expressivo, mas também, e sobretudo, um instrumento de conhecimento. Não nos estenderemos sobre a compreensão do conceito de traduzibilidade, a não ser para frisar que o tradutor interlingüístico deve ter capacidade de compreender uma nova concepção do mundo para cada nova língua-cultura que aprende. Não temos, com Whorf, uma indicação específica sobre a traduzibilidade, enquanto Sapir nos fornece indicações mais precisas sobre o que é ou não traduzível.
Ele é conclusivo ao classificar os textos em relação à tradução. Segundo este famoso lingüista, a arte não lingüística é traduzível, enquanto a arte lingüística não. Sapir estabelece outra distinção entre os textos nos quais prevalece o estrato em que, de maneira intuitiva, catalogamos nossa experiência pessoal (conteúdo latente da língua) e os textos caracterizados pela natureza específica do idioma no qual foram escritos. Os primeiros são, como é óbvio, mais traduzíveis, ao ter uma vinculação menor com a estrutura lingüística específica com que foram formulados3.
Hjelmslev afronta o problema da traduzibilidade dividindo as linguagens em duas categorias: as limitadas, como as linguagens artificiais da matemática, e as não-limitadas, que seriam as linguagens naturais. Segundo este lingüista dinamarquês, a traduzibilidade está garantida entre as linguagens não restringidas (naturais) e também ao se traduzir de uma linguagem restringida para uma não restringida, embora não o inverso:
"Any text in any language, in the widest sense of the word, can be translated into any unrestricted language, whereas this is not true of restricted languages. Everything uttered in Danish can be translated into English, and vice versa, because both of these are unrestricted languages. Everything which has been framed in a mathematical formula can be rendered in English, but it is not true that every English utterance can be rendered in a mathematical formula; this is because the formula language of mathematics is restricted, whereas English language is not4. (Qualquer texto em qualquer língua, no sentido mais amplo da palavra, pode ser traduzido para qualquer língua não restringida, ainda que isto não aconteça com as línguas restringidas. Tudo o que seja expresso em dinamarquês pode ser traduzido para o inglês, e vice-versa, porque são duas línguas não restringidas. Tudo o que se encerre em uma fórmula matemática pode ser expresso em inglês, mas não é possível expressar com fórmulas matemáticas todo enunciado em inglês. Isto é devido ao fato de que a linguagem das fórmulas matemáticas é restringida, embora a língua inglesa não seja).
W. V. Quine é um estudioso da língua que tem dado importante contribuição à teoria da tradução e pode, portanto, ser de grande ajuda para aclarar o conceito de tradução. Quine estabelece uma diferença entre a home language, a que se utiliza em casa, e a native language, a língua materna. Toda pessoa descobre prontamente que a native language de que falam seus compatriotas nem sempre coincide com sua home language e, portanto, para poder entender, é obrigado a submeter seus enunciados a uma tradução radical (radical translation), que permite diferenciar o significado e a pronúncia das mesmas palavras, conforme sejam ditas em família ou no âmbito mais amplo da comunidade que utiliza sua língua5.
O fato de que cada palavra adquire uma pronúncia ou um significado distintos em função do contexto em que é formulada e a conseqüente impossibilidade de formular critérios para uma única tradução possível para cada enunciado dão lugar ao conceito de Quine do caráter indeterminado da tradução (indeterminacy of translation). Dado que a linguagem familiar é a que proporciona a energia para enfrentar a língua dos demais falantes, para se habituar à indeterminação teórica (polissemia) dos significados lingüísticos, a tradução se torna o instrumento principal para aprender a língua e seus matizes semânticos. Por outro lado, um falante competente é sempre um bom "tradutor", em particular no sentido intralingüístico e intracultural, embora este raciocínio, por razões óbvias, não possa ser estendido à tradução interlingüística profissional.
Para Quine, o conceito da tradução se refere em primeiro lugar à tradução intralingüística. Na unidade seguinte, examinaremos o pensamento de outros estudiosos com relação ao conceito da traduzibilidade.

26 - A traduzibilidade (segunda parte)


Na unidade anterior, analisamos algumas das perspectivas sobre tradutologia de Sapir, Whorf e Quine. Há outro grande estudioso que mantêm um ponto de vista original sobre a relação expressão lingüística/consciência: Noam Chomsky [em russo, pronuncia-se "homski", e não "chomski"]1.
Segundo Chomsky, cada frase, antes de ser formulada,
é concebida como uma profunda estrutura no interior da mente. Num nível psicológico profundo, na opinião de Chomsky, uma frase em qualquer das línguas naturais tem sempre a mesma estrutura: as diferenças de cada construção lingüística somente se apresentam no aflorar da frase, quando o fenômeno psíquico se converte em fenômeno lingüístico.
A teoria chomskiana postula, assim, a existência de construções conceituais universais elementares, comuns a toda humanidade. Por isso, para Chomsky, a tradução interlingüística (e também a intralingüística) é sempre possível, porque os esquemas lógicos subjacentes nas linguagens naturais são constantes, uniformes. Basta atualizar, de modo diferente, uma mesma estrutura profunda para expressá-la em outro idioma
2.
Não é nosso objetivo propor aqui quão afortunada possa ser esta teoria em um campo estritamente lingüístico. Nos limitaremos a observar suas conseqüências para a tradutologia.
A concepção homskiana comporta a separação entre o nível informativo e o nível do estilo. Tudo que deriva das "estruturas profundas" é informação, enquanto que a maneira de expressar tal informação tem uma importância secundária e pertence ao campo dos signos formais
3.
Voltando à distinção estabelecida por Hjelmslev entre os planos de expressão e de conteúdo, a tradução sempre possível, segundo Chomsky, é a do conteúdo, enquanto o plano da expressão torna-se mero acessório. É uma concepção que exclui toda tradução literária e, por extensão, todo tipo de tradução de textos que, embora não sejam de natureza literária, possuam alguma característica conotativa. É evidente que, em um texto conotativo, o dominante, segundo Chomsky, está mais ligado à estrutura superficial que à estrutura profunda. Isto significa que, para Chomsky, a possibilidade de traduzir é ilimitada no que diz respeito a textos "fechados", que somente podem ser interpretadas de uma maneira, sem conotações. Ou seja, a uma parte exígua dos textos reais.
Whorf, Quine e Chomsky são lingüistas por formação, mas o problema da traduzibilidade não pode ser enfrentado de modo exaustivo se for limitado a considerações de tipo lingüístico: um texto é um fenômeno cultural que, dentro de sua cultura, exerce e sofre muitas influências. Neste sentido, tanto o original quanto sua tradução compartilham igual importância. Antes de ser lingüística, toda tradução é cultural:
"language, text, and text function are different reflections of a single culture. For that reason, from the point of view of total translation, it is more convenient to speak of culture translatability. The total translatability concept is complementary, comprising many different parameters within its field"
4 (língua, texto e função do texto são reflexos distintos de uma mesma cultura. Por isto, do ponto de vista da tradução total, é mais oportuno falar da traduzibilidade da cultura. A traduzibilidade total é um conceito complementar que abarca muitos parâmetros distintos dentro de seu campo).
Se avançarmos um passo além do dilema da intraduzibilidade lingüística dos textos conotativos, podemos considerar o conceito de traduzibilidade como a possibilidade de funcionamento de um texto como elemento cultural dentro de sua cultura. De um lado, devemos decidir se e de que modo é traduzível a cultura representada em um texto; de outro, temos de saber que relação meta e intertextual o texto tem com a cultura que o recebe, uma vez traduzido.
Outro aspecto fundamental da traduzibilidade é a necessidade que o tradutor sente, às vezes, de tornar mais explícito o significado do texto. O autor do original pode permitir-se algumas ambigüidades, palavras polissêmicas ou expressões, mas não o tradutor, porque o fato de ler o original e de planejar escrevê-lo no idioma e na cultura que o receberá implica um processo de interpretação racional e, na fase de reescrita, a explicação dessa racionalização.
Quando um tradutor não entende uma passagem, uma alusão, uma referência do autor do prototexto, essa incompreensão normalmente se revela na tradução. As características implícitas no prototexto se fazem explícitas no metatexto, e as que não se fazem explícitas formam parte do resíduo ou perda da tradução, devido a uma eleição racional do tradutor ou a sua incompreensão. O ato de traduzir deve não apenas transmitir o conteúdo do original, mas, também, deixar sua estrutura a descoberto
5.
"The demonstrative nature of translation as text representation must not be regarded as only subsidiary. On the contrary, it is one of the constitutive features of this subcategory of representatives since it distinguishes translation as a speech act from, for example, interpretation in the form of critical comment, or essay, and similar meta-literary achievements"
6. (A natureza reveladora da tradução como representação do texto não deve ser considerada somente subsidiária. Pelo contrário, é uma das características fundamentais desta subcategoria de representações, uma vez que diferencia a tradução como um ato de falar, por exemplo, da interpretação em forma de comentário crítico ou ensaio e outras atividades metaliterárias semelhantes).
Como vemos, segundo Broeck a tradução é, por sua própria natureza racionalizadora, uma forma de interpretação semelhante ao ensaio crítico ou à resenha. Portanto, a tradução neutral não existe. Se cada tradução é um processo de interpretação racional, é oportuno que tal perspectiva crítica se exponha também ao leitor.
Portanto, esta racionalização inscrita no processo tradutivo desempenha também um papel de conseqüências importantes. Na unidade seguinte, veremos de que maneira é possível aproveitar o processo de desvelamento do texto, em lugar de negar a idéia como um fenômeno tão incômodo quanto evidente, com o fim de melhorar a traduzibilidade através de uma gestão racional do resíduo no metatexto.

Bibliografia
BROECK R. VAN DEN Literary Conventions and Translated Literature, in Convention and Innovation in Literature, a cargo de T. D'haen, R. Grübel, H. Lethen, Philadelphia, Benjamins, 1989, p. 57-75.CHOMSKY N. Questions of Form and Interpretation, Lisse, Peter de Ridder, 1975.CHOMSKY N. Reflections on Language, Nova York, Pantheon Books, 1976.NIDA E. Semantic Components, in Babel, 8, 4.TOROP P. La traduzione totale. Ed. de B. Osimo. Módena, Guaraldi Logos, 2000. ISBN 88-8049-195-4. Ed. or. Total´nyj perevod. Tartu, Tartu Ülikooli Kirjastus [Tartu University Press], 1995. ISBN 9985-56-122-8.
1 Chomsky 1976, p. 182.2 Chomsky 1975, p. 37.3 Nida 1962.4 Torop 2000, p. 112.5 Torop 2000, p. 113 f.6 Broeck 1989, p. 59.