Sunday, February 27, 2005

Dr. Flávio Gikovate fala sobre educação nas escolas

Entusiasmo contra a bagunça

O psicoterapeuta Flávio Gikovate afirma que a paixão dos professores por suas matérias e a capacidade de fazê-las atraentes são os melhores remédios para conter alunos indisciplinados e criar um ambiente propício à busca do saber.
Roberta e Marília se juntaram para participar de um debate do Educacional. Em uma frase, resumiram o que pensam: "Achamos que a educação está muito desatualizada e que os professores têm que variar um pouco as aulas." Nada demais se a crítica das alunas tivesse ido parar onde se discutem reformas nas metodologias de ensino, na formação do professor ou as novas tecnologias na educação. Boa parte dos educadores daria o braço a torcer.
Só que onde elas puseram a boca no trombone, o que estava na ordem do dia era a indisciplina em sala de aula. Dissonante à primeira vista, a idéia foi ganhando adeptos, que engrossaram o coro à medida que o debate esquentava. "O grande problema da indisciplina nas escolas se deve à falta de interesse por parte dos alunos pelas aulas que são ministradas."
Até que uma participante, Carolina Miles, levou esse juízo ao limite e decretou sem meias-palavras: "A mesmice acaba com o ânimo de ambos [alunos e professores], gerando frustrações e aborrecimentos que muitas vezes explodem em violência na sala de aula."Em uma coisa o psicoterapeuta Flávio Gikovate está com elas e não abre: existe uma relação entre indisciplina e aulas monótonas e desinteressantes.
Tema polêmico entre pais e professores, muita água já rolou debaixo dessa ponte. Na hora de ver quem paga a conta, é comum que pais culpem as escolas e que as escolas se defendam dizendo que limites se impõem em casa. "Acredito que os pais - e também muitos professores - têm andado muito perdidos. Temos vivido um longo período de revolução cultural e de costumes desde 1968", argumenta.
Na entrevista a seguir, Flávio Gikovate explica por que "é privilégio dos jovens a condição de irresponsabilidade, condição necessária para o exercício da criatividade". Ele diz que a melhor forma de os professores lidarem com isso é caprichar nas aulas e criar um ambiente de estímulo à participação de todos. Para os mais acanhados, vê com bons olhos a criação de grupos de ajuda mútua para elevar a auto-estima dos alunos.
O senhor acredita que as relações em sala de aula ainda devem ter por base a autoridade do professor sobre o aluno?O professor tem que representar, sim, a autoridade. Isso não significa que tenha que ser um tirano. Pelo contrário, terá que se impor pelo fato de despertar a admiração e o respeito dos moços. Para o bem do desenvolvimento emocional e da formação dos jovens, os adultos não devem se furtar a assumir o papel de liderança que lhes cabe.
A imposição de um modelo - do professor ou da direção da escola - não é garantia de adesão por parte dos alunos. Com o maior acesso à informação, os alunos não estariam mais maduros e capazes de participar dessa tomada de decisões a respeito de tarefas e regras em sala de aula?A adesão dos alunos ao modelo proposto pela instituição e pelos professores dependerá da capacidade destes de se fazerem atraentes e de fazerem atraentes os temas que ensinam. É privilégio dos jovens a condição de irresponsabilidade, condição necessária para o exercício da criatividade. Eles devem ser preservados nesse papel "mesmo que lutem para assumir as responsabilidades próprias dos adultos". (Winnicott).
O senhor argumenta que a questão central não é encontrar maneiras de combater a indisciplina, mas criar um ambiente propício e favorável ao aprendizado, capaz de contagiar a todos. Que características/elementos teria esse ambiente?Tudo começa pelo aspecto físico da instituição: asseio, clima voltado para o saber e a seriedade e não o de um empreendimento comercial, modo de se portar, ser e vestir dos professores e auxiliares, etc. Depois, pela força do entusiasmo que os professores consigam transmitir a respeito do amor que têm por suas matérias, a paixão que sintam pelo saber e por uma vida voltada para a participação construtiva no seio de uma dada comunidade. As pessoas jovens captam o ambiente e sabem responder a ele, do mesmo modo que captam o clima de bagunça e oportunismo e também respondem a ele.
O carisma do professor seria um desses elementos? Qual sua opinião sobre o professor que abdica do papel de autoridade máxima da classe para se tornar um líder carismático, um amigo dos alunos, cujo objetivo é cativar a turma?O carisma corresponde a algo que não sabemos definir muito bem. Definitivamente não tem nada a ver com a postura de amizade e companheirismo que alguns professores gostam de ter com seus alunos. Não vejo esse comportamento como indispensável e nem penso que seja nocivo, desde que o professor continue a ser o professor e os alunos, os alunos. Não acho que se deva estabelecer uma relação de igual para igual, principalmente porque esta não é a verdade. O professor cativará a turma se for competente para ensinar e se for uma pessoa digna e admirável.
Muitos alunos temem expor suas dúvidas e outros não participam da aula para não receber a pecha de "CDF". O senhor acredita que essa é uma barreira para a criação do ambiente favorável a que o senhor se refere? O senhor acha que a escola deveria criar grupos de auto-ajuda, com psicólogos, para combater a timidez e elevar a auto-estima dos alunos? Sou muito a favor dos grupos de auto-ajuda no sentido literal da palavra: grupos homogêneos do qual participam criaturas com problemática similar e em que, sob orientação de um profissional qualificado, são debatidos os temas de interesse específico daquela pequena comunidade. É ótimo para jovens, especialmente para aqueles que, por timidez, não participam tanto quanto poderiam das atividades pedagógicas - tanto por vergonha de se mostrarem portadores de limitações que não deveriam mais ter como por medo de serem qualificados de CDF ou outros rótulos aparentemente depreciativos, mas que muitas vezes escondem a inveja. Sempre que os jovens forem capazes de ter comportamentos mais desinibidos vivenciarão um importante acréscimo de auto-estima, o que só acontece quando conseguimos ultrapassar alguma limitação ou obstáculo.
O senhor afirma que o conceito de felicidade está mudando. A felicidade não é mais a busca pelo prazer a todo custo. A felicidade significa alcançar os objetivos a que nos propomos. E para alcançá-los é preciso disciplina... O senhor acredita que os alunos chegam naturalmente a essa conclusão? Qual seria o papel do professor nessa questão?Se as pessoas se conscientizarem que o mais importante na vida é ser feliz e se forem claramente informadas de que a felicidade depende de uma atitude ética, de uma vida que persegue objetivos dignos e produtivos, e de que essa tarefa exige disciplina íntima - vale dizer que quem cobra nosso desempenho somos nós mesmos -, é claro que crescerá o número de moços e moças que tratarão de caminhar por essa estrada. O problema é que as informações que a sociedade transmite aos seus novos membros são contraditórias e muito influenciadas pelo jogo de interesse da indústria e do consumismo em geral. A felicidade parece relacionada com a aquisição de determinados bens e não com o crescimento interior, que é sua fórmula verdadeira. Pais e professores deveriam atualizar seu discurso e ajudar as novas gerações a enveredar por rotas mais consistentes.
O senhor acredita que a transmissão de valores se tornou uma questão importante nas escolas porque os pais delegaram indevidamente esse papel aos professores? Acredito que os pais - e também muitos professores - têm andado muito perdidos. Temos vivido um longo período de revolução cultural e de costumes (desde 1968). Acho que só agora podemos ver com mais clareza para onde estamos caminhando. Acho que só agora podemos pensar com otimismo sobre o futuro próximo e afirmar aos nossos filhos e alunos que uma conduta ética e disciplinada está na raiz da realização dos seus sonhos. Só agora podemos dizer aos nossos jovens que homens e mulheres viverão de uma forma "unissex", em maior concórdia e com menores hostilidades de natureza invejosa. Hoje podemos dizer a eles que o dinheiro é importante, mas que não cabe vendermos a alma ao diabo para termos acesso às riquezas materiais. Hoje podemos aprender com nossos jovens que o sexo é coisa simples e natural e que não implica em dominação de um gênero sobre o outro.
Com a reprovação em baixa e contestada por inúmeros pedagogos, os professores se viram sem um dos principais recursos que, historicamente, serviam para exigir o cumprimento das tarefas e manter a disciplina. De que meios alternativos os professores dispõem para atingir esses objetivos? Penso que nenhum aluno deveria ser aprovado se não for capaz de desenvolver as tarefas escolares a contento. Assim, não penso que se deva abrir mão desse recurso repressivo. A verdade é que muitas pessoas só se comportam de acordo com os valores éticos por medo de represálias. O ideal seria que todos viessem a introjetar valores. Este é um dos objetivos da educação. Porém, enquanto não se atinge esse estágio, é necessário que se usem recursos repressivos, tais como a reprovação, medidas suspensivas contra a indisciplina, etc.