Sunday, February 27, 2005

"Palavra de Cérebro"

Palavra de cérebro

Cada frase que você pronuncia, por mais simples que seja, exige que o cérebro realize um trabalho supercomplexo. O mistério da fala humana é o tema do Dr. Dráuzio Varela na viagem pelo interior de uma máquina perfeita: o nosso cérebro.
Uma cirurgia extraordinária! Mesmo com o cérebro completamente exposto, a paciente Sarah precisa estar consciente. Ela tem um tumor muito próximo à região cerebral que controla a linguagem falada, a linguagem verbal. É necessária precisão absoluta na retirada do tumor. Qualquer passo em falso, e Sarah pode nunca mais voltar a falar.
Em casos como esse, o paciente faz parte da equipe. Sob anestesia, mas acordada, consciente, Sarah vai contando números sem parar. Mas, quando o médico estimula a região da fala com um impulso elétrico, ela não consegue continuar a contagem.
A corrente elétrica bloqueia a atividade mental daquela área. Assim que o cirurgião retira o aparelho, Sarah volta a falar. Agora os médicos sabem exatamente o lugar onde o bisturi não pode nem chegar perto. Ali está o precioso centro da linguagem verbal.
A gente não dá muito valor, mas o simples ato de bater papo exige um complexo trabalho mental. Primeiro, é preciso ter dentro do cérebro um grande arquivo de palavras com os seus sons e significados. Mas só isso não basta. É necessário também um outro mecanismo para reconhecer as palavras que lemos e ouvimos e os símbolos que vemos nas ruas.
Isso acontece numa região que os médicos chamam de área de Wernicke. Fica do lado esquerdo do cérebro, logo atrás do ouvido. A área de Wernicke é responsável pela compreensão e pela escolha das palavras que usamos. Sem ela, não conseguiríamos achar as palavras nem entender o que os outros dizem.
Mas não adianta só saber montar a frase na mente. É preciso que ela faça sentido. Aí é que entra uma outra região: a área de Broca.
A área de Broca é responsável pela nossa expressão verbal e escrita. É com essa parte do cérebro que juntamos as sílabas de cada palavra de uma forma coerente. Viver sem a área de Broca é um desafio mental.
Trinta palavras. Isso é tudo o que ex-locutor esportivo Osmar Santos consegue falar nos dias de hoje. Em 1994, ele sofreu um acidente no caminho de Marília para Birigui, no interior de São Paulo. Quando acordou, estava com o lado direito do corpo paralisado. A área de Broca tinha sido destruída. Logo depois do acidente, Osmar não falava nada.
Osmar Santos é conhecido no Brasil inteiro como o homem que falava cem palavras por minuto e, de repente, se viu privado dessa linguagem. Mas ele entende nitidamente tudo o que se fala.

Osmar faz sessões freqüentes de fonoaudiologia. O objetivo é treinar outros neurônios para substituir os que foram destruídos na região da fala.
O cérebro tem uma capacidade enorme de se adaptar. Osmar não pintava nada, e agora pinta, e com a mão esquerda, que não era a mais usada.
É impressionante pensar que, se Osmar tivesse sofrido o mesmo acidente antes dos 7 anos de idade, provavelmente hoje estaria falando como qualquer um de nós. Os neurônios das crianças são capazes de malabarismos incríveis para recuperar funções perdidas.
"É como se eu começasse no meio do mato a abrir uma trilha. A reabilitação na verdade é como se nós fizéssemos com que ele passasse sempre nessa trilha até ela ir se alargando e ir formando uma estrada", explica a fonoaudióloga Clara Hori, que cuida de Osmar.
Osmar diz que não ficou revoltado com o acidente, que considera uma fatalidade. Com esforço ele diz: "Vida, muito bom!"
Persistência e bom humor são as grandes armas de Osmar Santos para abrir mais e mais caminhos alternativos para seus neurônios.
"Cuidar da higiene pessoal, tomar decisões da sua vida pessoal, como escolher a roupa, se vestir. Ele hoje tem uma independência significativa", comenta Oscar Ulisses, irmão de Osmar.
Na Universidade de Washington, nos Estados Unidos, Dr. Ojemann, neurologista, quer mapear os mínimos detalhes das áreas cerebrais da linguagem.
Uma mulher tem um quadro de epilepsia tão grave que precisa ser operada. Assim como na cirurgia que foi apresentada no começo da reportagem, a paciente deve estar acordada para que a região da fala não seja danificada acidentalmente.
Depois de examinar mais de 200 pacientes, Ojemann descobriu que o cérebro arquiva as palavras que aprendemos em grupos separados.
"É o nosso dicionário interno. Então, nós teríamos o volume de nomes próprios, o volume de animais, o volume dos vegetais", explica Lúcia de Mendonça, integrante do Laboratório de Neurolingüística da Universidade de São Paulo (USP).
A língua materna, que a gente aprende quando começa a falar, fica guardada numa região do lobo frontal, no lado esquerdo do cérebro. É a matriz da nossa linguagem.
Quando se aprende uma segunda língua, entra em ação o lado direito do cérebro. É criada uma espécie de "filial" da linguagem, para ajudar a memorizar esse novo dicionário de palavras estrangeiras.
"Na hora em que a aquisição de outra língua se torna quase igual à língua materna, muito provavelmente o aprendizado vai ficar totalmente no lado esquerdo do cérebro", afirma Lúcia.
A nova língua só passa completamente para o lado esquerdo do cérebro, para a matriz da linguagem, quando nós usamos esse idioma com freqüência.
Sem a prática, o dicionário estrangeiro vai sendo aos poucos apagado do lado direito do cérebro. Afinal, o que não é usado, não precisa ser guardado.